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Resenha: Trainspotting - Irvine Welsh

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A HISTÓRIA

É difícil resumir Trainspotting. Não há um conflito principal. Não há heróis ou vilões. Não há começo, meio e fim. Trainspottingé quase uma colcha de retalhos, onde cada pedaço de pano é um flash na vida de um ou de vários personagens. Quase uma obra de pequenas crônicas sobre as mesmas pessoas, esse livro retrata a juventude agitada de Renton, Spud, Sick Boy, Thommy, Begbie e mais alguns outros.

Mas o você realmente precisa saber sobre Trainspotting não é o que ele conta, e sim o contexto ao qual ele nos apresenta. O cenário é a Escócia dos anos 90, mais especificamente a cidade de Leith, subúrbio de Edimburgo. Renton, Spud, Sick Boy, Tommy e Begbie cresceram nas mesmas ruas, estudaram nas mesmas escolas públicas (nas quais nunca chegaram a se formar). Compartilham desde pequenos um sentimento de vazio, de impotência. Uma miséria social que nada tem a ver com fome ou falta de saneamento básico. Eles cresceram sabendo que nunca seriam mais do aquilo que eram. Que nunca fariam história ou fortunas. Que nunca mudariam o mundo. O mundo disse para eles: arrumem um emprego, comprem uma casa, formem uma família. Mas esses jovens sabiam que não era exatamente isso que o mundo reservava para eles. Que o mundo não abre suas portas para jovens sem diploma, sem roupas bonitas e linguajar das ruas.
“As limitações e a feiura desse lugar tinham sido expostas pra mim, e eu nunca mais o veria com os mesmos olhos.” Pág. 170
Então, em vez de empregos subalternos, apartamentos caindo aos pedaços e famílias desfuncionais, aquilo que o mundo realmente oferecia para eles, Renton, Spud, SickBoy, Tommy e Begbie encontraram algo melhor, ou, pelo menos, mais prazeroso. Esses jovens passam os dias se recuperando de ressacas e bolando pequenos esquemas, pequenos crimes, para garantir que a próxima noite seja épica. Pois, para eles, são as noites que importam. É durante a noite que visitam pubs e vão as festas, onde se embebedam, fazem sexo e usufruem de um variado número de drogas. Contudo, a favorita é a heroína, que dá um barato mais duradouro e os faz esquecer do vazio dentro de si.


 AS CRÍTICAS DO LIVRO

Mas não se engane, Renton, Spud, Sick Boy, Tommy e Begbie não são rebeldes resistindo e lutando contra sistema, suas vidas marginais não são um protesto político. Os jovens são viciados em drogas, junkies dispostos a qualquer coisa por mais uma dose. E o que adoro nesse livro é justamente isso: sem nenhuma intenção de ser político, de ser crítico, ele acaba justamente o sendo. Trainspotting retrata, de forma tão real que chega a incomodar, a existência fútil e dolorida de uma geração perdida em valores e costumes opressores que não fazem qualquer sentido e que não proporcionam oportunidade para serem mudados..
“Ainda assim, derrota, sucesso, que porra é essa? Quem se importa? Todo mundo vive e depois morre, num espaço bastante curto de tempo. É isso: encerrada a porra do assunto.” Pág. 176
Os protagonistas de Trainspotting sentem na alma o repúdio pela cultura a qual pertencem, mas não tem pretensão alguma de mudá-la ou combatê-la (bem diferente do protagonista de Clube da Luta, livro que aborda temáticas semelhantes a Trainspotting, mas conclusões bem diferentes). Em vez do vazio existencial de uma vida dentro dos padrões ocidentais capitalistas, os jovens de Trainspotting escolhem o vazio existencial de uma vida marginal, cuja a bebida e as drogas mascaram o tédio e o sentimento de impotência diante um mundo que eles não podem mudar e um mundo que não os vê. Os protagonistas de Trainspotting são invisíveis e querem permanecer assim. Eles se mantêm inertes diante sua própria miséria social, não porque não a percebem, mas porque sabem que não há como realmente mudá-la.

Então por que ler Trainspotting, afinal? O que faz desse livro, que não tem trama bem definida, ou qualquer intuito de ser uma crítica social, um clássico cult tão admirado e lido ao redor do mundo? Para mim, pelo menos, Trainspottingé um alerta. É um tapa na cara do leitor, seguido de um questionamento: qual é o sentido da sua vida? Qual é o sentido de ir para a escola, para a faculdade, de arrumar um emprego? Qual o sentido de ter o carro do ano, uma casa decorada, dois filhos e um cachorro? Trainspotting faz com que voltemos para nós mesmos e nos perguntemos: por que de tudo isso? Porque seguimos as regras, nos matamos para entrar em padrões inalcançáveis? Por que lutamos tanto para tentar viver uma vida de luxo, de sucesso, que apenas poucos irão realmente conseguir ter?


Mas, apesar de nos fazer perceber que nosso modo de vida e de pensar é completamente fútil e irreal, Trainspotting não oferece qualquer solução. O livro, em momento algum, sequer dá a entender que poderíamos viver de outra forma, que há outros meios de ter uma existência menos vazia. Trainspotting mostra o outro lado, o daqueles que sabem que há algo de muito errado na coisa toda, mas que não têm vontade, ou, mais importante, oportunidade de fazer qualquer coisa sobre isso. 
“Estou cercado de pessoas que me são mais próximas, mas nunca me senti tão sozinho. Nunca, em toda a minha vida.” Pág. 149
Falo, novamente, de miséria social. Renton, Spud, Sick Boy, Tommy e Begbie vivem não uma pobreza de alimentos, de tetos sobre suas cabeças, mas de um sentido para viver. Por isso, escolheram as drogas, a bebida, o sexo e a violência como modo de levar seus dias. E a rotina deles é nauseante, sangrenta, brutal e, pior de todos, vazia. Uma vida preenchida por um prazer químico, por sentimentos superficiais, por relações quebradas. E é por isso que Trainspotting acaba sendo um alerta. A obra de Irvine Welsh mostra, de forma explícita, mas honesta, como a nossa cultura está perpetuando valores distorcidos e costumes fúteis que não preenchem a nossa existência e que só levarão cada vez mais pessoas, especialmente os jovens, a uma vida miserável, criminosa e viciada até que a humanidade volte para seu estado animalesco e logo a seu fim, ou até que decidamos mudar tudo de vez e realmente tentar criar um modo de viver e pensar melhor.


A LEITURA

Eu comecei Trainspotting bastante animada, já tinha ouvido falar muito bem do filme, por isso fiquei surpresa e intrigada quando soube que ele era baseado nesse livro de Irvine Welsh. Contudo, apesar do animação inicial, demorei mais de duas semanas para concluir a obra, pois, a temática do livro é, ao mesmo tempo, intrigante e cansativa. Logo de início fiquei confusa com o grande números de personagens, especialmente porque ora eles são chamados pelos seus apelidos (alguns tem mais de um), ora pelo nome, então, demorei a entender quem era quem.

Outro fator complicador da leitura de Trainspottingé que, de um capítulo para o outro, o autor muda o foco de um personagem para o outro e troca também de ponto de vista, passando da primeira para a terceira pessoa, o que deixa a narrativa um pouco sem ritmo. Entretanto, eu gostei bastante da escrita do Irvine Welsh. Com seu vocabulário agressivo, cheio de gírias e palavrões, ele não só consegue agregar a personalidade de cada personagem a sua narrativa, mas também nos presenteia com uma escrita recheada com uma ironia bastante ácida, o que conseguiu aliviar um pouco o peso desse livro.
“Cê pega seu melhor orgasmo, multiplica a sensação por vinte, e ainda fica a anos luz de distância. Meus ossos secos e quebradiços são aliviados e liquefeitos pelas carícias da minha heroína.” Pág. 19
Mas, apesar de ter vários momentos divertidos, daqueles de dar risada mesmo, Trainspottingéuma leitura dura e algumas vezes nauseante. O autor não nos poupa dos detalhes mais sujos e angustiantes sobre a rotina dos viciados em drogas, especialmente sobre as dores e sensações durante as crises de abstinência. Ele também narra momentos chocantes de violência (como quando um dos personagens quase espanca a namorada grávida), de sexo e de bebedeira. É preciso ter estômago forte para ler Trainspotting, mas mesmo tendo que ler sobre situações tão sombrias e miseráveis, é uma obra que vale a pena. E gostei bastante que o autor não tenha mascarado e fantasiado o vício em substâncias como várias obras (especialmente os filmes) fazem, mostrando que as drogas não transformam a sua vida em um passei divertido, e em sim em uma montanha-russa de horrores.


A EDIÇÃO

Essa edição nova da Editora Roccoé muito boa. A tradução está excelente (especialmente se considerarmos que a escrita do autor é quase uma versão escrita da linguagem oral, com vários trocadilhos em inglês e termos escoceses, e que os tradutores conseguiram adaptar bem o texto ao português, sem tirar a originalidade da escrita de Irvine Welsh) e o texto não tem nenhum erro. A diagramação é simples, e, apesar de ter gostado do tamanho e fonte das letras, gostaria que houvesse um espaço maior (talvez até uma página) entre os capítulos.

Eu adoro essa capa de Trainspotting. Além de bonita (esse laranja florescente é lindo, mas chocante, então combina com a obra), a capa tem uma textura emborrachada que é bem gostosa ao toque. Confesso que eu demorei um pouco a entender a ilustração da frente e do verso, mas faz sentido a imagem de um olho e suas veias em um livro que fala tanto sobre drogas (sendo que a maioria delas tem efeito ou de dilatação ou de contração da pupila).


CONCLUSÕES FINAIS

Uma leitura brutal, ironicamente divertida, e às vezes nauseante, Trainspotting traz uma coletânea de histórias sobre a vida marginal e viciada de um grupo de jovens escoceses. Uma crítica aos valores e costumes distorcidos e a futilidade da vida moderna, essa obra também é um alerta para como o vazio existencial da nossa cultura pode levar a humanidade para caminhos sombrios. Um livro sobre abuso de drogas e de álcool, sobre violência, sexo e doenças, Trainspottingexpõe a profunda miséria social e existencial de uma geração perdida e dolorida

É um livro difícil de engolir, mas que impacta profundamente e nos faz refletir. Apesar da narrativa confusa e grande número de personagens, eu amei Trainspotting, que entrou para a minha lista de favoritos. Qualquer pessoa de estômago forte que tenha a curiosidade de ler sobre vício, violência e miséria, através de personagens que soam assustadoramente reais e cativantes, a obra está mais que recomendada.

QUOTES FAVORITOS

O Johnny Cisne já tinha sido um grane amigo meu, nos velhos tempos. Jogamos futebol juntos pelo Porty Thistle. Agora ele era um traficante. Lembro que uma vez ele me disse: não existem amigos nesse negócio. Apenas sócios. Achei que ele tava sendo durão, petulante e exibido, até que entrei fundo na coisa. Agora sei exatamente o que o cara quis dizer.” Pág. 15

“Não amo nada (exceto a heróina), não odeio nada (exceto as forças que me impedem de arranjar um pouco dela) e não temo nada (exceto ficar sem um pico).” Pág. 27

Eu desprezava a mim mesmo e ao mundo porque falhava ao enfrentar minhas próprias limitações, bem como as da vida.” Pág. 157

Bem, eu escolho não escolher a vida. Se os viados não conseguem lidar com isso, a porra do problema é deles. Como diz Harry Lauder, eu só quero seguir em frente até o fim da estrada.” Pág. 159

Aqui estou eu no limbo do vício: enjoado demais pra dormir, cansado demais pra ficar acordado. Um mundo além da imaginação onde nada é real pros meus sentidos, exceto a onipresença do sofrimento e da dor esmagadora no meu corpo e na minha mente.” Pág. 160

Título: Trainspotting
Título original: Trainspotting
Autor: Irvine Welsh
Editora: Rocco
ISBN: 9788532517739
Ano: 2016
Páginas: 288
*Esse livro foi uma cortesia da Editora Rocco
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