Resenha: O Fundo é Apenas o Começo - Neal Shusterman

Caden Bosché um adolescente comum, que tira boas notas e faz amigos com facilidade. No tempo livre, eles e os amigos se divertem criando um videogame e Caden é responsável por desenhar seus personagens. Em casa, Caden tem uma relação normal de amor e ódio com sua irmã mais nova, que o adora na mesma medida em que o irrita. Seus pais são interessados na medida normal, pegando em seu pé para que se esforce, mas nunca o pressionando demais. Enfim, Caden é um garoto normal, em uma família normal, em uma escola normal.

Caden Bosché um adolescente a beira de um colapso. Algo se agita dentro dele, algo que ele não sabe nomear, algo do qual ele não consegue se livrar. Caden era um garoto normal, agora vê conspirações em todos os lugares, padrões que indicam que algo terrível está prestes a acontecer. Nada é o que parece e Caden não consegue ficar quieto, não consegue dormir ou comer – ele está se afogando nos próprios pensamentos. E ele não é o único que percebe que as coisas estão estranhas. Seus amigos e seus pais começam a questionar o seu comportamento incomum, e Caden começa a suspeitar que eles fazem parte da conspiração contra ele.

Quando soube do lançamento de O Fundo é Apenas o Começo, imediatamente fiquei curiosa para ler a obra. O autor já tinha me chamado atenção no livro Fragmentados e, em O Fundo é Apenas o Começo, Neal Shusterman prova o seu talento com as palavras e facilidade em criar personagens com os quais nos identificamos. Na trama, que mistura realidade e fantasia, acompanhamos a trajetória obscura e assustadora de um jovem aos limites da sua própria sanidade. Traçando um paralelo entre o Caden em casa, na escola, no hospital, e o Caden no navio, em capítulos alternados, o autor nos desafia a descobrir o que é real e o que é delírio.

- Conheça a distopia Fragmentados, do mesmo autor

A história, além de desafiadora, intrigante e sombria, é sensível e poderosa. O Fundo é Apenas o Começoé uma verdadeira viagem para dentro de uma doença mental. O que é muito interessante no sentido de nos fazer entender melhor como é ter uma doença que bagunça com todos os seus pensamentos e sentimentos; e como é difícil e assustadora a transição do “normal” de antes da doença, para o surgimento e crescimento dos sintomas, e em seguida para o tratamento até o ponto final de encontrar o equilíbrio. Fiquei feliz que Neal Shusterman conseguiu demonstrar como a doença não afeta só o doente, mas toda a sua família e círculo social, e como não falamos muito de cura nesses casos, e sim de uma convivência com a doença e a diminuição dos sintomas mais graves.

A narrativa em primeira pessoa de Shusterman, em O Fundo é Apenas o Começo, é recheada de metáforas e referências. Sobre a perspectiva de Caden, o autor nos leva para o mundo confuso do personagem, onde obsessão, paranoia e, principalmente medo, rapidamente tomam cada aspecto da vida, real e imaginária, do jovem. Os capítulos bastante curtos, e alternados entre a vida real de Caden, e a vida no navio, tornam a leitura viciante, além de bastante rápida. Eu terminei O Fundo é Apenas o Começo em quatro dias e só o não devorei mas rápido por causa da temática pesada do livro. Essa não é uma obra fácil de ler, ela mexe tanto com a gente a ponto de nos fazer sentir tão despedaçados quanto o personagem. O final não é exatamente feliz, e sim esperançoso, ou seja, perfeito para a obra.

O Fundo é Apenas o Começo tem uma excelente edição. A começar pela tradução, que está impecável. O texto não apresenta qualquer erro. A fonte, além de um bom tipo e tamanho, tem um espaçamento maior que o comum, que, juntamente as páginas cor de creme, deixam a leitura mais confortável. Eu gosto da capa de O Fundo é Apenas o Começo. Ela é sombria como a história, e traz uma das ilustrações presentes no livro. A obra é recheada com desenhos abstratos feitos pelo filho do autor, Brendan Shusterman, como representações dos desenhos que Caden faz. As ilustrações tornam a leitura muito mais rica, e fazem parte da edição cuidadosa que a obra tem.

Poderoso e impactante, O Fundo é Apenas o Começo não é uma leitura para qualquer pessoa, e pode até acabar sendo gatilho ou provocando mal-estar em quem já passou ou passa por situação de vulnerabilidade mental. Contudo, a obra é necessária, especialmente por tratar de um tema recheado de tabus: a doença mental em jovens. A trajetória do protagonista é sombria, se alternando entre realidade e delírio, em uma história intrigante e impossível de largar, mas também bastante cativante.

Me emocionei durante vários momentos da leitura e, mesmo após terminá-la, não consegui tirá-la da cabeça. Para quem gosta de saber mais sobre como é conviver com uma doença mental, como ela afeta a percepção e vida do doente, assim como de sua família e amigos, O Fundo é Apenas o Começo está mais que recomendado. Neal Shusterman mais uma vez me encantou com sua trama poderosa e crítica, e estou ansiosa para devorar mais obras do autor.

“Muito antes de o navio existir, já existia o Capitão. Essa viagem começou com ele, você suspeita que vai terminar com ele, e tudo o que resta entre uma coisa e outra é a comida em pó dos moinhos de vento que podem ser gigantes triturando ossos para fazer o próprio pão. Pise com cuidado ou irá despertá-los.” pág. 10

“Foi esse problema que tenho com o espaço vazio que me levou à arte. Vejo uma caixa vazia, tenho o impulso de enchê-la. Vejo uma folha em branco, não posso deixá-la nesse estado. Folhas em branco gritam comigo, exigindo serem preenchidas com o lixo do meu cérebro.” pág. 33

“Fiquei pasmo de ver como as pessoas podem viver assim tão próximas, como é possível estar literalmente cercado por milhares de seres humanos a apenas centímetros uns dos outros – e ainda assim, completamente isolado. Eu achava difícil imaginar uma coisa dessas. Agora, não acho mais.” pág. 47

“Não é que eu não consiga controlar esses pensamentos. Ou que tenha a intenção de formulá-los. Eles apenas aparecem, como presentes de aniversário feios que a gente não pediu para ganhar e não pode devolver.” pág. 95

“Há alguma coisa nos olhos dele agora – diz um dos dois. - Não sei como descrever isso. Não consigo olhar para eles. - E isso quase te faz rir, porque eles não veem o que você vê quando olha nos olhos deles. Verdades que ninguém mais pode ver. Conspirações e conexões tão distorcidas e pegajosas como a teia de uma viúva-negra. Você vê demônios nos olhos do mundo, e o mundo vê um poço sem fundo nos seus.” pág. 135

“Garotos mortos são postos em pedestais, mas garotos com doenças mentais são varridos para debaixo do tapete.” pág. 148

“Há muitas coisas que não entendo, mas de uma tenho certeza absoluta: não existe diagnostico ‘correto’, somente sintomas e nomes para conjuntos de sintomas. (…) Os rótulos não significam nada, porque não existem dois casos idênticos.” pág. 255

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